quarta-feira, 31 de outubro de 2018

A Violência Sexual que Ninguém Conta


Foi num banheiro feminino de um centro cultural, era fim de noite numa cidade agitada, poucos minutos para os portões fecharem, após o dia muito animado e todas as programações feitas pela amizade, as amigas entraram juntas. Entre essas conversas que rolam entre o rodízio no banheiro descobriram: de um grupo de quatro amigas, três delas sofreram algum tipo de violência sexual na infância e/ou juventude. 

Sabe aquelas estatísticas que você insiste em ignorar? Sabe aquela dor que você guarda no peito por achar que a culpa era sua? Afinal, a sociedade faz isso muito bem! A culpabilização da vítima. Sabe aquele arrependimento por não ter contado para ninguém? Ou aquele medo de contar? Sabe aquele nojo que você tem de si própria? Do seu corpo? Sabe aquele problema de prazer sexual que você ainda não conseguiu superar? Aquele medo de andar sozinha na rua? O medo do escuro? Do desconhecido?

Talvez só quem passou por alguma violência sexual vai entender essas questões, porque elas invadem nosso pensamento vez ou outra. Quando alguma coisa não vai bem elas aparecem, atormentam nossa mente. E mesmo que as terapias ajudem, que os divãs façam bem, há memórias que não desaparecem. Podem ser digeridas de alguma forma, mas o velório, curto ou longo, sempre precede o enterro.



Se estiver preparada para ler um dos relatos, então continue!

Era uma noite comum, numa casa com algumas pessoas, deitei num quarto com cama de casal e por ali dormi. Acordei no meio da noite com a mão dele passeando pelo meu corpo. Era alguém com quem eu não tinha qualquer relação, apenas um ex qualquer coisa (e mesmo que ainda estivéssemos num relacionamento, sem consentimento também é estupro). Estava profundamente adormecida, mas ainda assim retirei a mão dele do meu corpo e pedi que parasse. Voltei a dormir. Acordei com o órgão sexual dele encostando em mim. Pedi novamente que parasse. Agora, ele violentamente puxava minhas roupas, limitava meus movimentos e insistia calar minha boca, enquanto eu tentava gritar, revidar, com a força que não tinha diante dele. Depois de algum tempo parece que a alma desiste, o corpo padece e todo o grito verbal vira um grito em forma de lágrimas, de um choro desesperador. Dói o corpo, dói a violência, mas dói ainda mais uma parte de nós que parece ser toda a nossa essência. Você vê a sua vida virar cinzas, vê a sua história e seus desejos serem silenciados. Vê toda a cor e amor do mundo acabarem em tão poucos segundos. Não sobra nada. Apenas sentimentos vazios e um corpo despedaçado. Ele terminou e saiu. Naquele momento já não sabia o que devia fazer. Desisti. Desisti de lutar. Quem acreditaria? Sempre fui ensinada que devia sentar como mocinha, não devia usar roupas provocantes ou atiçar os desejos de um homem. Então eu já estava condenada. Já era a culpada do crime que me matou. Para ele talvez tenha sido legítima defesa. Seguiu a vida sem qualquer constrangimento. Eu continuei a morrer, todas as vezes que lembrei daquela noite.     

Certa vez perguntaram quando o feminismo entrou na minha vida e respondi que foi muito antes de nascer, quando outras mulheres morreram lutando por coisas hoje tão comuns, quando meus antepassados foram escravizados, quando minha família pobre foi designada a um determinado lugar na sociedade. Ele ganhou corpo depois, quando cresci assistindo todo tipo de violência contra mulheres próximas, quando, por ser mulher, não aceitavam que eu fosse boa em cálculos e quisesse ser cientista, reservando para mim o lugar de submissão e servidão. Quando fui limitada muitas vezes e tive que ceder o lugar a um garoto ou ter menos oportunidades que ele. Quando apanhei duas vezes de garotos da escola e do bairro e tive que manter o silêncio. E tantas outras ocasiões que só fizeram do meu corpo rebelião. Luto é verbo: lutaremos!

Então cheguei em um momento da vida que jamais largarei minha militância feminista. Porque foi por mim, mas agora é por todas as meninas e mulheres que sofrem, que são violentadas, que são silenciadas. Para quem não sabe o que é viver situações como essas pode parecer "mimimi", mas mesmo que você ache isso, não vou desejar que aconteça algo semelhante para que tenha empatia, porque situações que nos roubam de nós, que sabotam nossa identidade não deveriam ser vividas por nenhuma de nós.

Sinto muito por quem não entende nossa luta, mas saiba que é uma luta histórica e que você colhe, de alguma forma, as sementes que foram plantadas há muito tempo. 

Entre todas as mulheres que conheço que foram violentadas sexualmente é consenso que se tivessem recebido qualquer orientação na escola poderiam ter identificado que o que vivenciaram (a maioria na infância e por pessoas que frequentavam suas casas) era abuso e deveria ser combatido. Também é consenso que suas famílias nunca deram qualquer orientação e que quando souberam das violências nada fizeram. 

A violência sexual ainda é tabu, como vários outros assuntos ligados à sexualidade. E se não falamos, não orientamos, não educamos, não lutamos contra, não debatemos, como evitaremos essas violências?   



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